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Reflexões sobre os Contos de Fadas

Reflexões sobre os Contos de Fadas

Os contos de fada, as lendas, assim como os mitos, representam uma expressão elementar e universal de processos psíquicos inconscientes do ser humano. Expressam suas necessidades instintivas, seus valores básicos e as possibilidades criativas que podem ser atualizadas. Do mesmo modo, muitos sonhos, fantasias e visões ou delírios também se originam dessa dimensão profunda e criativa do inconsciente humano.

Os contos de fada se originaram e se espalharam em regiões onde o acontecimento mágico e maravilhoso, ainda era parte essencial da realidade humana. Todas as figuras encontradas nos contos – bruxas, dragões, fadas, anões, princesas, sapos e heróis – são representações arquetípicas que atuam em nós, mesmo sem termos conhecimento delas, sendo portanto realidades psíquicas. Marie-Louise von Franz nos diz que os heróis e as heroínas dos contos de fada são modelos que nos ensinam a viver em consonância com o todo de nossa personalidade.

Sabemos que originalmente os contos eram dirigidos a adultos. Aproximadamente até o século XVII eles se referiam a situações de vida que precisavam ser resolvidas ou enfrentadas colocando assim um padrão de desenvolvimento humano. O que se torna manifesto através dos relatos “maravilhosos” – como também são chamados os contos de fada – são representações arquetípicas, ou seja, padrões de comportamento pré-moldados pela história e cultura milenar do ser humano, manifestações simbólicas provindas das camadas mais profundas da sua psique. Podemos notar, ao estudar os conteúdos dos sonhos e das fantasias do homem moderno, que as imagens de caráter simbólico encontradas nos contos de fada, correspondem à dimensão arquetípica do inconsciente humano até os tempos atuais. São expressões do Inconsciente Coletivo, relatando experiências humanas em situações-limite, ou seja, de perigo, de transição ou de transformação.

Um outro aspecto interessante, com o qual nos defrontamos ao lidar com as imagens dos contos de fada, e com os processos inconscientes de modo geral, é o caráter paradoxal das figuras arquetípicas.

Provavelmente isso acontece pelo fato delas manifestarem a relação que o ser humano mantém com as oposições dentro dele mesmo. Não existem personagens inteiramente maus ou inteiramente bons nos contos de fada. Eles expressam os princípios de auto-regulação da psique, tais como a compensação e a complementação, a integração dos opostos, a transcendência dos conflitos, a sublimação através da percepção de um símbolo transformador, enfim todos aqueles processos psíquicos que almejam a cura e a inteireza original e última do indivíduo.

Quando se ouve um relato dramático de algum conto maravilhoso, sonho, mito etc., entra-se em contato com  imagens coletivas que emergem de um grupo ou de um indivíduo, num determinado momento de sua história.

Nos contos de fada, por exemplo, encontramos uma mentalidade ainda bem primitiva, que remete ao tempo em que a psique humana era projetada na Natureza, e vivia com esta num estado de unidade original. Vemos árvores e animais que possuem a fala e expressam os pensamentos e sentimentos inconscientes dos homens. Vemos deuses, heróis, bruxas e fadas, dragões e pássaros encantados, príncipes e princesas, caçadores e gnomos envolvidos em aventuras que nos dizem respeito ainda.

Todos esses seres representam uma parte de nossa psique com a qual a maioria dos homens não entra mais em contato. São aspectos simbolizados por essas personagens e que, uma vez tornadas conscientes, vão enriquecer e completar o ponto de vista consciente. A interligação com esse lado de nossa psique pode proteger-nos de desvios patológicos e é uma fonte de vitalidade e fantasia criativa. As representações arquetípicas falam para nós através de imagens e símbolos, e permitem a percepção da vida de um modo bem diferente do que aquele ao qual estamos habituados em nosso cotidiano. Nossa tarefa seria então não só manter o ponto de vista consciente mas enriquecê-lo com a visão mais ampla e mais profunda do inconsciente.

Uma das formas de lidar com as imagens emergentes é interpretá-las. Procuramos descobrir seu sentido oculto através da comparação com motivos semelhantes que aparecem em outros relatos ou situações, onde foi alcançado aquilo que era buscado. Por exemplo: em representações religiosas de provas ou rituais a serem obedecidos, em manifestações artísticas onde são expressados conflitos e realizações e, principalmente, nos relatos dramáticos dos contos de fada, mitos e lendas.

A interpretação das imagens emergentes possibilita um processo específico de integração, semelhante ao processo de análise verbal, porém com regras próprias que é preciso conhecer. Principalmente no que se refere ao símbolo sintetizador e transformador, que é possível detectar no desenrolar do relato ou da expressão imagética, é necessário estar atento e possuir algum conhecimento da linguagem do inconsciente. Nesse sentido, a atividade do psicólogo, ao interpretar, é chamar  a atenção sobre algo que o homem moderno frequentemente não vê mais.

Ao interpretar um conto de fada, ou um sonho, podemos nos preocupar mais com as causas de um determinado processo evolutivo – e esta seria uma interpretação mais redutiva -ou então buscar o sentido que as imagens apontam para o futuro de uma determinada história de vida. Esta seria uma interpretação prospectiva. Seja qual for a maneira de interpretar um relato de um processo inconsciente, podemos verificar sempre uma estrutura dramática que subjaz ao desenrolar dos acontecimentos. Inicialmente podemos notar uma  exposição, em que uma situação inicial é caracterizada; ela apresenta as condições em que a história se origina, o problema que deve ser solucionado no decorrer da ação. A segunda fase é a condensação, que é o próprio caminho a ser percorrido pelos personagens do conto, com todas as peripécias e provas que costumam surgir nesse tipo de relato. A condensação culmina com uma espécie de clímax, ou  ponto de mutação da história; é nesta parte que costumam ocorrer as transformações dos seres encantados, ou as lutas de libertação contra algum monstro ou fera. Depois desta fase pode vir então a situação final, que contém a nova situação psicológica de vida,  conquistada no desenrolar da história.

Nos contos de fada as figuras aparecem isoladas, mas ao mesmo tempo interligadas por uma espécie de Harmonia, como acontece na Música e na Poesia. Elas não apresentam uma roupagem pessoal, antes são portadoras simbólicas de algum processo de desenvolvimento coletivo. O herói parece não ter vida interior subjetiva: sempre é corajoso, não tem dúvidas, luta até vencer o inimigo. A heroína suporta as piores torturas, os piores sofrimentos, até atingir seu objetivo. São tipos de seres humanos, figuras arquetípicas reduzidas à sua essência, à sua maior simplicidade, e não podem ser comparadas diretamente com o Ego.

Quando nos referimos ao aspecto feminino ou masculino representado nos contos de fada é nossa intenção examinar tanto a manifestação consciente da personalidade como o conteúdo anímico, em geral inconsciente. A mulher real atua sobre o homem em sua ânima, e por sua vez a ânima do homem influencia a mulher real. Especialmente os homens com atividade mental e espiritual intensa tendem a ter o âmbito do eros pouco diferenciado. Homens desse tipo não se preocupam, aparentemente com os sentimentos de sua mulher, nem com os próprios. A convivência com mulheres atua de forma educativa sobre sua personalidade. Também no sentido de evoluir para fora do âmbito materno torna-se muito importante a relação dos homens com as mulheres: é na diferenciação dos traços psíquicos da mãe em relação à sua ânima que o homem se relaciona com sua própria afetividade. Por outro lado a convivência entre as mulheres também contribui para a integração de aspectos inconscientes. A sombra projetada só pode ser integrada  através do sofrimento consciente provocado pelo choque de opostos. Este provoca a renovação dos sentimentos e o amadurecimento deles. O exemplo desse choque de opostos e do sofrimento que ele provoca pode ser encontrado nos contos da Branca de Neve, da Cinderela, na Bela Adormecida e de inúmeros outros em que a heroína incorpora o amadurecimento da capacidade de amar através da compreensão real de si mesma e dos outros.

Quando nos utilizamos dos contos de fada como recurso terapêutico, precisamos levar em conta a experiência de terapeutas nesse campo da Psicologia Analítica. Segundo Dieckmann, pessoas neuróticas se assemelham a heróis que não deram conta da tarefa que lhes foi colocada num determinado conto de fada, ou seja, heróis fracassados em seu próprio conto, ou então pessoas que vivem inconscientemente o papel do herói, às vezes de maneira excessivamente concreta.

Quando pedimos a um paciente que nos diga qual é o seu conto preferido (ou mais de um) o que virá à tona será a constelação de complexos que domina sua vida e o efeito terapêutico será alcançado se ele conseguir se identificar com a atitude do herói ou da heroína que realiza a sua tarefa. É importante também que possa depois abandonar essa identificação: como acontece em todo processo projetivo existe o momento da identificação e depois a retirada da projeção no objeto e a integração do conteúdo projetado. Enquanto não tivermos conhecimento da estrutura de complexos de um paciente, poucas vezes será hora de trabalharmos com contos de fada.

A lembrança dos contos preferidos na infância, pode se dar através de sonhos, de diversos detalhes tais como as roupas que o personagem usava ou mesmo dos livros que se mostram mais usados que outros. Essa lembrança pode ser influenciada pela atitude do terapeuta dependendo, também, de ser ele uma pessoa familiarizada com a linguagem desses contos. A contratransferência, certamente é um fator importante na lembrança de um determinado conto, em relação à temática de um paciente.

Podemos citar alguns aspectos importantes para o uso terapêutico dos contos de fada:

  • Os contos falam de situações conflituosas ou de falta; as soluções apresentadas são criativas e podem referir-se tanto a uma situação coletiva quanto individual, ou seja, possibilitar a integração de um aspecto transcendente ou imanente. A transcendência traz a distância necessária para lidar com a situação, a imanência provoca a proximidade necessária ao envolvimento com a história.
  • A interpretação prospectiva dos contos possibilita a emergência de uma espécie de coragem para o futuro, evitando que o paciente fique apegado demasiadamente ao passado.
  • O herói ou a heroína representam a atitude que seria adequada numa determinada situação aplicável a algum paciente nosso. Por exemplo: “O Pescador e sua Mulher” se refere à capacidade de saber desejar na proporção certa, em relação às suas possibilidades internas e externas.
  • A interpretação ao nível do sujeito, já conhecida na interpretação de sonhos, pode ser usada nos contos de fada. Figuras secundárias são traços de personalidade do herói principal.
  • A interpretação só pode ser considerada correta quando produz uma experiência de evidência.

O uso terapêutico de contos de fada se baseia no efeito que as imagens têm sobre nós e sobre nossos pacientes: as figuras ou os temas podem nos mobilizar, colocar em movimento processos que estavam estanques, expressar conflitos ou estados psíquicos que não saberíamos expressar de outra forma.

Há pelo menos 5 000 anos, antes do aparecimento das religiões centradas na figura masculina, a Europa era uma cultura matriarcal, pacata e amante das artes. A Grande Deusa era venerada como força de vida relacionada com a natureza e a fertilidade. Com as invasões dos cavaleiros indo-europeus que eram guerreiros, a cultura foi se transformando em patriarcal. O poder da Grande Deusa foi dividido entre muitas deusas menores, recebendo, cada uma, alguns dos seus atributos. A divindade masculina tomou o lugar principal.

Nossa cultura dominante, através de sua tradição cristã, apresenta características fortemente patriarcais. Apesar do culto da Virgem Maria, sentimos a falta de símbolos religiosos da mulher no que se refere a seus aspectos naturais, ctônicos, imanentes. Isso se torna especialmente claro em situações de “vingança da natureza” ou seja quando somos pegos de surpresa por alguma doença, algum revés da vida, momentos de solidão e desamparo. Falta-nos o modelo da força feminina, de uma divindade como Artemis e Atenas que sabem caçar e lutar ou como a deusa indiana Kali que sabe distribuir bênçãos e pragas com igual soberania. A amoralidade da natureza, sua falta de julgamento ou ambição nos é estranha dentro da moral vertical, hierárquica, do princípio do dever e do esforço, presente em nossa educação e cultura. Falta-nos o registro para enfrentar essas situações rudes da vida.

Nesses momentos podemos tomar contato com a realidade arquetípica de diversas maneiras: uma forma de perceber, de atuar ou de sentir aquele momento; uma renovação de nossas energias ou um impulso criador.

Elisabeth Bauch Zimmerman

BIBLIOGRAFIA

  1. Franz, Marie-Louise von – A Interpretação dos Contos de Fada -S. Paulo: Ed. Paulinas, 1990
  2. Bolen, Jean Shinoda – As Deusas e a Mulher – S. Paulo: Edições Paulinas, 1990
  3. Dieckmann, Hans – Contos de Fada Vividos – S. Paulo: Edições Paulinas, 1986
  4. Jacobi, Mario; Kast, Verena ; Riedel, Ingrid – Das Böse im Märchen – Fellbach: Bonz, 1978
  5. Kast, Verena – Märchen als Therapie – Olten : Walter-Verlag AG, 1986