O Tempo do Era uma vez

Os contos de fada, as lendas, assim como os mitos, representam uma expressão elementar e universal de processos psíquicos inconscientes do ser humano. Expressam suas necessidades instintivas, seus valores básicos e as possibilidades criativas que podem ser atualizadas. Do mesmo modo, muitos sonhos, fantasias e visões ou delírios também se originam dessa dimensão profunda e criativa do inconsciente humano.
Nos contos de fada encontramos uma mentalidade ainda bem primária que nos remete ao tempo em que a psique humana era projetada na Natureza e vivia com ela num estado de unidade original. Vemos árvores e animais que falam e expressam os pensamentos e sentimentos inconscientes dos homens. Vemos deuses, heróis, bruxas e fadas, dragões e pássaros encantados, príncipes e princesas, caçadores e gnomos envolvidos em aventuras que ainda nos mobilizam. Normalmente o tempo é indefinido, ou, melhor dizendo, flexível, plástico, invisível até a ponto de se tornar eterno. A narrativa pode acontecer a qualquer momento do tempo cronológico, uma vez que as peripécias são vividas por imagens arquetípicas que possibilitam a identificação com elas por parte de quem conta ou ouve a história.
O tempo nos contos de fada poderia ser chamado de virtual ou puro, porque não nos envolvemos na prática com o tempo da narrativa. Ficamos retidos na trama, enquanto dura e nos deixamos conduzir por esse fluxo de imagens seja com pressa ou lentidão, apenas estando lá, atraídos e encantados.
Uma característica dos contos de fada é que temas similares se manifestam em lugares distintos e distantes uns dos outros, sem haver comunicação entre as pessoas que habitam esses lugares. Conteúdos inconscientes transmitem temas religiosos, épicos ou românticos, numa linguagem simbólica que capta a atenção dos ouvintes. Esses conteúdos numinosos, no âmbito da psicoterapia, são hoje amplificados e integrados na consciência das pessoas, incluindo o fator tempo nessa apreciação. Nos desafios que os contos apresentam, o tempo atua como fator atualizador, porque é no agora do conto que as tarefas são realizadas. Mas nas narrativas, em seus diversos lugares de origem, o tempo é o mesmo: sincronicamente significativo enquanto a ação dramática do conto durar. Depois disso retorna o tempo cronológico de cada lugar diferente.
As histórias começam com “era uma vez” e isso pode ser agora, amanhã, num futuro distante ou já ter acontecido. Os personagens se apresentam com certas caraterísticas, então se transmutam enquanto o enredo evolui.
Outra forma comum dos contos serem introduzidos é com “há muito, muito tempo atrás, em um reino distante…”. As duas formas nos descolam da noção de um tempo conhecido, do mundo exterior cotidiano. Os acontecimentos são lançados em um tempo sem tempo.
Para nossa orientação no mundo real, o tempo e o espaço são elementos fundamentais, que nos ajudam a entrar no exercício da representação e da determinação dos fenômenos.
“Lugar e tempo são os elementos fundamentais e mais necessários para qualquer determinação. … situar-se no espaço e no tempo faz parte da realidade da existência.” (JUNG, 2012a, § 283)
“No entanto, como seres psíquicos não (somos) dependentes inteiramente de espaço e tempo. […] Através da integração progressiva do inconsciente temos uma chance razoável de fazer experiencias de natureza arquetípica que nos dão sentimento de continuidade antes e depois de nossa existência. Quanto melhor entendermos o arquétipo, mais participaremos de sua vida e mais perceberemos sua eternidade e intemporalidade”. (JUNG, 2012b, § 1572)
Quando buscamos referências para falar do tempo, Marie Louise nos fala que:
“[…] nos tempos helênicos, Aion, o deus do tempo, era visto como uma imagem do aspecto dinâmico da existência, o que podemos chamar atualmente de princípio da energia psicofísica. Todos os opostos – mudança e duração, … o bem e o mal, vida e morte – tudo estava incluído neste princípio cósmico.” (VON FRANZ, 1992, pág. 65)
No pensamento chinês antigo, o termo Tao é composto do sinal para a cabeça e do sinal para caminhar. Richard Wilhelm, sinólogo que nos aproximou da sabedoria chinesa, traduz o Tao por sentido. Outros o traduzem como caminho. A palavra cabeça se refere provavelmente à consciência, enquanto o caminhar pode representar o caminho a ser percorrido por um indivíduo. A ideia do Tao, portanto, pode nos ajudar a fazer uma analogia com o que no momento é necessário ao caminho de individuação. Normalmente, leva-se muito tempo até que ambos os lados da personalidade, representados pela consciência e pelo inconsciente se harmonizem, ou “entrem no Tao”. Dentro da esfera do pensamento oriental, estar em consonância com o Tao pode ser entendido como estar em total harmonia com Deus, num tempo que podemos designar como sendo ao mesmo tempo instantâneo e eterno. (JUNG, WILHELM, 2007)
“O mesmo simbolismo arquetípico do tempo, com a divindade e um rio infinito de vida e morte, pode ser encontrado na Índia. Na Bhagavad Gita, o deus Krishna se revela a Arjuna em sua forma terrível. Ele vê nele todos os outros deuses juntos: “Eu vejo uma figura infinita, na qual todas as figuras se misturam em inúmeros corpos, braços e olhos”. Num grande rio elas desaparecem nas mandíbulas de fogo flamejante, entrando nelas com passos apressados. Então, Vishnu diz: saibam, eu sou o tempo que faz os mundos perecerem quando maduros e venho para trazer a destruição. Não apenas Vishnu, mas também Shiva representa o tempo. Ele simboliza “a energia do universo criando e sustentando, cada vez mais, as formas nas quais ele se manifesta.” (VON FRANZ, 1992, pág. 65 – 66)
Na Gita, Krishna, que ao mesmo tempo é o condutor do carro de batalha de Ajuna, se revela como Deus em toda sua luminosidade. Quando ele é o condutor, o tempo avança com enorme poder; quando se faz ver como deus, o tempo se dilata e amplia e se torna puro como um tecido celestial. Nele Arjuna se deixa levar e confortar, para depois ser despertado para o rugido da batalha. Essa alternância das dimensões temporais da narrativa nos faz viver duas dimensões bem opostas, como se fôssemos jogados entre o céu e a terra, juntamente com Arjuna. (LORENZ, 2007)
“A Bíblia, como narrativa mitológica, em nossa tradição judaico cristã, “vê Deus como puramente fora do tempo. Como tendo criado o tempo juntamente com o universo. Depois de separar as águas do firmamento superior do firmamento inferior, e criado o sol e a lua, e o dia e a noite, o tempo começou. E, assim, apesar de que acreditamos que a matéria obedece a leis, que fazem com que certos eventos sejam recorrentes no tempo, há também milagres recorrentes, fenômenos mágicos e fenômenos parapsicológicos que são causados pela direta intervenção do Deus criador, uma constante e dramática confrontação entre Sua criação e o homem.” No novo evangelho, o “evento mais radical que irrompeu no tempo em um completo Antes e Depois diferentes, é a encarnação de Cristo.”” (VON FRANZ, 1992, pág. 68)
“Segundo a crença cristã, não pode haver repetição deste fato, a não ser pela promessa de que Cristo vai voltar para cumprir sua gloriosa missão. Neste contexto, o tempo, se refere mais ao futuro do que ao passado. Também os judeus esperam a vinda do Messias no final dos tempos, projetando no futuro a realização de sua crença.” (VON FRANZ, 1992, pág. 68)
Contemplando essas referências históricas, parece que se delineia um certo movimento pendular entre o passado e o futuro, o que pode nos causar a impressão de que os eventos ocorreram num grande tempo, que apesar de terem datas, estas são ultrapassadas na experiência de quem ouve a narrativa. O tempo se amplia para uma dimensão numinosa.
“[…] existem manifestações psicológicas paralelas que não se relacionam absolutamente de modo causal, mas apresentam uma forma de correlação totalmente diferente. Tal conexão parecia basear-se essencialmente na relativa simultaneidade dos eventos, daí o termo “ sincronicidade”. Longe de ser uma abstração o tempo se apresenta como continuidade concreta contendo qualidades e condições básicas que podem se manifestar em locais diferentes com relativa simultaneidade, num paralelismo que não se explica de forma causal; por exemplo, na ocorrência simultânea de pensamentos, símbolos ou estados psíquicos similares.” ( JUNG, 2013, §81)
A relatividade do tempo em nossas vivências é bem expressa em dois fragmentos de Fernando Pessoa (2006, 100 e 191):
“[…] Vivo sempre no presente. O futuro não o conheço. O passado já o não tenho. Pesa-me um como a possibilidade de tudo, outro como a realidade de nada. Não tenho esperanças nem saudades. Conhecendo o que tem sido a minha vida até hoje – tantas vezes e entanto o contrário do que eu a desejara – , que posso presumir da minha vida de amanhã que será o que não presumo, o que não quero, o que me acontece de fora, até através da minha vontade? Nem tenho nada no meu passado que relembre com o desejo inútil de o repetir. Nunca fui senão um vestígio em um simulacro de mim. O meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este a um virar de página e a história continua, mas não o texto. […]”.
“[…] Um dia talvez compreendam que cumpri como nenhum outro, o meu dever-nato de intérprete de uma parte do nosso século; e, quando o compreendam, hão de escrever que na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é uma pena que tal me acontecesse. E o que escrever isto será na época em que o escrever incompreededor, como os que me cercam, do meu análogo daquele tempo futuro. Porque os homens só aprendem para uso de seus bisavós, que já morreram. Só aos mortos sabem ensinar as verdadeiras regras de viver. […]”.
Quando o tempo se manifesta nos contos de fada, as tarefas e provas, que devem ser cumpridas pelos personagens heroicos no desenrolar das histórias, também acontecem num certo ritmo, sendo comuns as suas repetições. Em todo o percurso das narrativas, sempre podemos perceber esse encadeamento rítmico que conduz à situação final. Esta traz a solução dos conflitos ou apresenta uma nova situação de vida para os personagens principais. Então, o tempo cessa, até que se ouça a narrativa de novo.
“Em última análise, todos os acontecimentos psíquicos se fundam no arquétipo e se acham de tal modo entrelaçados que é necessário um esforço crítico considerável para distinguir com segurança o singular do tipo. Disso resulta que toda a vida individual é, ao mesmo tempo, a vida do éon da espécie. O individual é sempre “histórico” por se achar rigorosamente vinculado ao tempo. Inversamente, a relação entre o tipo e o tempo é indiferente.” (JUNG, 2012c §146)
“Em outras palavras, o que nasce ou é criado num dado momento adquire as qualidades desse momento” (JUNG, 2013. §82).
Na estrutura dramática de um conto, o tempo se intensifica quando se vai chegando ao clímax da história. Ele se condensa e depois se abre de novo quando vai chegando ao desfecho final. O mesmo pode se observar no início, o tempo vai adquirindo intensidade a partir da criação do enredo, da trama envolvente da narrativa.
“Um mito (ou um conto de fada), permanece sempre um mito mesmo que certas pessoas o considerem a revelação literal de uma verdade eterna… É necessário de tempos em tempos reavivá-lo através de nova interpretação. Isso significa que se deve adaptá-lo de forma nova ao espírito mutante da época”. (JUNG, 2012b §1665)
Nas narrativas de modo geral podemos descobrir referências bem específicas a certos personagens que representam o tempo:
“[…] Encontramos o cavalo como símbolo do tempo, também como o universo todo. Na religião mitráica encontramos um estranho Deus do Tempo, novamente o Aion, também chamado Crono ou Deus Leontocéphalos porque sua representação estereotipada é uma figura humana com cabeça de leão, com postura rígida, envolta por uma serpente, cuja cabeça, passando por detrás, se projeta para a frente sob a cabeça de leão.” (JUNG, 2013 §425)
Em geral os personagens dos contos são apresentados na situação inicial na exposição, seguidos do envolvimento de um ou mais impasses e momentos de tensão, deixando explícitas as relações de oposição que serão resolvidas. Os personagens estão inseridos no tempo que podemos chamar de necessário e suficiente para dar corpo a suas aspirações básicas e suas potencialidades criativas que durante esse tempo irão se atualizar.
Em vários contos que têm como tema central um segredo que deve ser mantido ou descoberto, há um tempo em que esta tarefa deve ser realizada, o que cria uma tensão em quem ouve, já que o fenômeno da identificação se instala. Será que vai dar tempo? E, se não der, vai haver uma punição, uma perda, um sacrifício? Em Rumpelstilzchen (GRIMM, 2018), no Cesto no Cestinho (ZINGERLE, Brüder, 2010) e outros, uma rainha deve lembrar de um nome num certo prazo de tempo. Senão, irá perder seus filhos. E, no último momento, ela se lembra. A urgência caracteriza a vivência do tempo nessas histórias. Tem-se a sensação de que por pouco a história não se cumpriria.
No conto de Andersen, A Rainha da Neve (ANDERSEN, 1967), toda a trama se resolve quando um dos personagens centrais, Kay, que está no castelo da Rainha da Neve, tenta compor sempre de novo uma palavra com letras de gelo e consegue, finalmente, formar o nome Eternidade e com isso fica liberado do sortilégio de estar preso no gelo. Durante o período das tentativas, o tempo parece congelado. Quando as lagrimas de emoção de Gerda caem em seus olhos e ele a reconhece, o gelo em seu coração derrete e o tempo recomeça seu movimento na trama. Então, a narrativa evolui até a solução final ter sido alcançada. O tempo para Gerda, até chegar ao castelo, foi muito longo para permitir a viagem épica da heroína feminina, transformando-a nessa jornada de menina em mulher, assim como Kay se transforma em um jovem homem ao retornar à sua casa.
Nos contos Os Onze Cisnes (ANDERSEN, 1967) e A Bela e a Fera (GRIMM, 2018) o tempo se expande e o que predomina é a persistência das heroínas até que alcancem seu objetivo, que é o de redimir um masculino fragilizado, dominado pelo aspecto negativo de um feminino onipotente. O ato heroico nesses contos é persistir, ter calma e não o enfrentamento de uma luta ou de uma batalha. Para isso, o tempo tem que ser calmo, quase parado, porque as perspectivas de solução parecem longínquas, mas como muitas vezes acontece na vida, depois de um longo sustentar de uma situação muito penosa, o tempo começa a correr para a solução final.
Nos contos O Burrinho, João Ouriço (GRIMM, 2018) e O Pássaro de Fogo (AFANÁSSIEV, 2019), o tempo se manifesta num ritmo de repetidas tentativas de avanço dos heróis – principalmente um menino desvalorizado – em sua interação com personagens poderosos, com características ora negativas, ora positivas, procurando obter seu tesouro máximo – a princesa, joias e riquezas e animais encantados. Neles, o herói alcança seus frutos pelas repetições que corrigem os erros cometidos e lhe é dado o tempo necessário para o êxito final.
Na Bela Adormecida e em Rapunzel (GRIMM, 2018) o tempo é de espera e se prolonga na expectativa de uma redenção, desta vez por parte do feminino ingênuo que precisa amadurecer no encontro com a sombra e que, no momento certo, encontra seu salvador. Nesses contos houve a necessidade de uma dilatação do tempo, no qual os ferimentos puderam se curar e o encontro final é alcançado.
O Mahabarata (2009) narra a história de Satyavan e Savitri como um relato de amor conjugal que vence a morte. Satyavan é a alma que, levando a divina verdade do ser em seu interior, desce ao seio da morte e da ignorância.
A lenda de Savitri nos traz uma atmosfera de intenso trabalho espiritual, uma vez que a heroína é um ser muito evoluído, já com níveis de consciência elevados. Além dessa pré-condição, trabalhou concentradamente com os recursos que todo caminho espiritual oferece: jejum, meditação, oração, persistência e disciplina, preparando-se para o grande encontro com a morte.
Era seu destino ser a mediadora entre o deus da morte, Yama, e seu marido Satyavan. Como ser muito evoluído ele deveria ainda viver e espalhar conhecimento, justiça e compaixão entre os homens. Dentro da atmosfera das narrativas mitológicas e dos contos de fada, poderíamos supor que sobre ele houvesse sido lançado um sortilégio. Este sortilégio só poderia ser desfeito por um ser muito especial, que empenhasse a sua própria vida e trouxesse uma transformação de consciência a todos os envolvidos
Savitri era uma princesa de grande beleza e virtude que vivia com seus pais em seu reino. Era tão bela e sábia que não se achava um pretendente que lhe conviesse. Num dia, andando pela floresta, encontrou-se com Satyavan, também um jovem príncipe que vivia com seus pais na floresta em uma cabana com alguns serviçais. O trono de seu pai, Dyumatsena, havia sido usurpado por um irmão traiçoeiro e agora, além de pobre, o rei havia ficado cego. A pequena família vivia modestamente na floresta, aceitando sua sina e praticando a harmonia, a busca pela verdade e pela virtude.
Logo ao se encontrarem os jovens sentiram que tinham sido feitos um para o outro. Voltando para casa, Savitri anunciou aos pais que havia encontrado seu futuro marido. Ao saber que o escolhido era um jovem de boa origem, mas pobre, consultaram o homem sábio que era também astrólogo em sua corte sobre possíveis sofrimentos que Savitri viria a sofrer, a partir de sua escolha. O velho sábio disse a ela: menina, sua felicidade vai durar apenas um ano. Após este tempo Satyavan será buscado por Yama, o deus da morte. Você quer mesmo persistir em sua escolha?
Savitri afirmou que o único companheiro para ela seria Satyavan e após o casamento foi morar na floresta com os sogros e o marido. Lá viveu uma vida simples e feliz. Quando o tempo concedido ao casal estava terminando, preparou-se internamente para o grande confronto com Yama. No dia em que a morte viria, saiu com seu marido para buscar lenha na floresta, como sempre faziam. Chegando lá, Satyavan sentiu um súbito cansaço e deitou sua cabeça no colo de Savitri para repousar. Adormeceu profundamente.
Então surgiu Yama e disse a Savitri: entrega a alma de seu marido. Chegou a hora dele. Savitri seguiu Yama que levava a alma de Satyavan, procurando manter uma conversa com ele sobre todos os aspectos da vida e da morte. Yama foi ficando admirado com a sabedoria e a virtude dela e fazia mais e mais perguntas para testar seu conhecimento. Quando chegaram ao umbral do reino dos mortos Yama disse a Savitri: daqui você deve voltar. Nenhum mortal consegue pisar neste solo sem afundar e cair no vazio insondável, sem tempo, nem espaço.
Savitri, no entanto persistiu em acompanhar a alma de Satyavan. Yama resolveu conceder-lhe o direito de fazer três pedidos, desde que não fosse a alma de Satyavan. Os dois primeiros pedidos de Savitri foram que a luz dos olhos e o reino de seu sogro Dyumatsema fossem devolvidos a ele. Depois, como terceiro pedido, desejou que o rei tivesse uma grande descendência para que seu governo justo pudesse persistir durante muitos e muitos anos. Yama concordou com os pedidos e só então percebeu que Savitri o pegara desprevenido, uma vez que o pai de Satyavan não possuía outros filhos e já era um homem em idade avançada. Yama teve que entregar a alma de Satyavan a Savitri e ela voltou para o local de onde tinham partido
Logo, ainda deitado no colo de sua esposa, Satyavan despertou de seu sono profundo e perguntou se havia sucedido alguma coisa. Savitri não teve tempo de responder a essa pergunta porque já se ouviam os clarins e o tropel dos cavalos e dos elefantes anunciando a chegada do casal real e de seus súditos. Os pais de Satyavan haviam recebido seu trono de volta e Dyumatsena recebera de volta a luz de seus olhos. Todos voltaram felizes para o reino e viveram muitos anos em paz e harmonia. Quando Satyavan assumiu o trono reinou com bondade e sabedoria e assim também o fizeram seus filhos, herdeiros do trono real.
Percebemos várias formas de tempo nessa narrativa desde o tempo exterior, medido em anos e dias, até o tempo inexistente no reino da morte. Savitri é um ser que atravessa essa extensão sem perder a consciência e obtém o êxito que almejava.
O momento certo, a sincronicidade, é uma característica presente em todas essas narrativas, seja num clima de urgência, persistência ou repetição ritmada. A superação do conflito, da perda, do abandono acontece num tempo predestinado, um agora iluminado, redentor e definitivo, até que um novo desafio surja e seja enfrentado. Esse é o momento em que o tempo se densifica de novo na narrativa, afastando-se da realidade exterior, diluindo o tempo preciso em imagens oníricas, entrando num ritmo repetitivo e lúdico, apagando-se por completo no fim, só existindo enquanto o conto é narrado.
Sri Aurobindo (1995), pensador e filósofo indiano, criador do Yoga Integral, escreveu um grande poema épico sobre essa lenda Savitri falando da condição humana sobre a terra e criando uma série de personagens. Para terminar vou citar um trecho da poesia que fala de um iniciado em sua trajetória evolutiva.
Sua vontade de cancelar o destino de seu corpo
Apenas pelo poder atemporal do espírito que ainda não nasceu…
(Livro I – Canto II)
Uma velha conta de exausto sofrimento
Excluir do tempo o longo débito que compõem a alma.
(Livro I – Canto II)
Na ampla oficina do mundo maravilhoso
Modelou no interior do tempo o ritmo das suas partes
Então aconteceu o abrupto e transcendente milagre
(Livro I – Canto III)
Abriram as janelas da visão interna
Ele controlou a casa do Tempo indiviso
Levantando a pesada cortina da carne
(Livro I – Canto III)
Ele fez dos grandes sonhos um molde para as coisas vindouras
E lançou seus feitos como bronze para enfrentar os anos
Sua caminhada pelo Tempo superou o passo humano
(Livro I – Canto III)
Esperando o lento milagre de nossa mudança
No processo seguro e deliberado da força mundial
E a longa marcha do Tempo que tudo revela
(Livro I – Canto IV)
Referências:
AFANÁSSIEV, Alexander. Contos populares da Rússia – O Pássaro De Fogo – Editora Berlendis E Vertecchia, 2019.
ANDERSEN, Hans Christian. A Rainha da Neve – Volume II, Editor Globo, 1967.
AUROBINDO, Sri. Savitri: A Legend & a Symbol – New U.S. Edition, 1995.
DHARMA, KRISHNA. Mahabharata – O maior épico espiritual de todos os tempos. Editora Religare, 2009.
GRIMM, Irmãos. Os 77 Melhores Contos De Grimm – Nova Fronteira, 2018.
JUNG, C. G. Psicologia e alquimia, Vol. 12, Petrópolis, RJ: Vozes, 2012a.
___________. A vida simbólica, Vol. 18/2, Petrópolis, RJ: Vozes, 2012b.
___________. Psicologia e religião, Vol. 11/1, Petrópolis, RJ: Vozes, 2012c.
___________. O espírito na arte e na ciência, Vol. 15, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
___________. WILHELM, R. O segredo da flor de ouro, Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
LORENZ, Francisco V. (Tradutor) Bhagavad Gita: A Mensagem do Mestre, Pensamento, São Paulo, 2007.
PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego, Companhia das Letras, São Paulo, 2006.
VON FRANZ, Marie–Louise. Psique e Matéria, Boston e Londres, Shambala, 1992.
ZINGERLE, Brüder, Nach der Sammlung der. Tiroler Märchen, frei erzählt von Frau Wolle, illustriert von Irmingard Jeserick Tyrolia – Tyrolia -Verlag · Innsbruck-Wien, 2010.