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A Individuação como Realização Simbólica da Unidade Corpo-Psique

A Individuação como Realização Simbólica da Unidade Corpo-Psique

O ENCONTRO COM O CORPO

Como muitas vezes temos a oportunidade de perceber, a individuação é um processo natural de amadurecimento e desdobramento inerente à psique de todo ser humano, que tem como objetivo a realização dos potenciais originalmente contidos no indivíduo. Se não tivéssemos que contar com tantos obstáculos internos e externos, esse amadurecimento viria por si mesmo e nenhuma providência especial teria que ser tomada. No entanto, sabemos que não é assim. Citando Jolande Jacobi, podemos afirmar que “Alcança-se a inteireza da personalidade quando os principais pares de contrários estão relativamente diferenciados, quando, portanto, as duas partes do todo da psique, consciência e inconsciente, estão mutuamente interligados, e estão numa relação mútua viva, pelo que se assegura o gradiente energético, o segmento imperturbado da vida psíquica através do fato de que o inconsciente jamais poderá tornar-se totalmente consciente, mantendo sempre a plenitude energética mais forte. (2013, p.185). As regularidades podem ser observadas nas mais diversas áreas de atuação e expressão do ser humano.

Desde que comecei a trabalhar com a dança meditativa e criativa, percebi que a personalidade individual se desenvolve num longo processo original, onde os impulsos criativos das camadas mais profundas se integram no campo de relações conscientes do Eu.”… No momento em que o físico toca ‘regiões virgens e inalcançáveis’ e quando a psicologia admite ao mesmo tempo em que há outras formas de vida psíquica além das aquisições da consciência pessoal, em outras palavras, quando a psicologia toca a escuridão impenetrável, então o campo intermediário dos corpos sutis ressurge novamente e o físico e o psíquico são mais uma vez misturados numa unidade indissolúvel” (2012, v.12, par.394).

Observando as pessoas envolvendo-se na improvisação da dança e realizando seus movimentos em contato com sua constelação interior, eu percebia que, ao mesmo tempo em que expressavam criativamente a realidade da música, ocorria, nelas, uma integração de várias dimensões psíquicas. Assim, muito antes de me familiarizar com a perspectiva da Individuação junguiana, pude testemunhar algo muito semelhante, com a diferença de que o confronto com os conteúdos (inconscientes) não se dava de modo consciente. Foi interessante observar os desenvolvimentos que os mesmos exercícios desencadeavam em pessoas com uma problemática diferente, quanto ao seu processo interior. Evidenciou-se que a modificação da postura externa e da vivência interna observada nos indivíduos com quem trabalhei nestes últimos vinte anos não se devia, apenas, a um efeito de relaxamento genérico proporcionado pelos exercícios de movimentação e sim a uma reorganização e revalorização do espaço existencial interno e externo.

O movimento corporal tem um significado profundo e revelador da realidade somática interna, seja em sua realidade espacial, como projeção da imagem corporal, seja em sua expressão dinâmico-afetiva na ação, ambos influenciando decisivamente a experiência dos relacionamentos .

Através de estudos sobre a simbologia espacial, sabemos que existe uma relação entre as imagens de espaço e de movimento, interiores e exteriores. Esta relação baseia-se em esquemas coletivos, arcáico-dinâmicos, que estruturam e organizam o espaço. Todos nós vivemos num campo de forças em que atuam direções básicas, tais como: em cima/embaixo, lado esquerdo/lado direito e à frente/atrás.

Além disso, configuramos o espaço com movimentos redondos e angulares, contrativos e expansivos, simétricos e assimétricos que nos remetem às regularidades presentes em todo o universo. O que sempre surge como novidade nessa estruturação é o espaço que cada indivíduo cria por si mesmo. No entanto, espaço e tempo acontecem simultaneamente. O tempo limita a extensão do espaço, possibilitando ao indivíduo estabelecer suas relações vivenciais, que passam a ser registradas pelo corpo. Esses registros poderão tornar-se conscientes em várias dimensões.

Se contemplarmos as características externas do nosso corpo, ou seja, seu tamanho, seu peso, sua postura, a pele que o cobre, etc., formaremos uma imagem desse corpo em nós, assim como ele é visto por fora. Enquanto a memória reproduzir essa imagem, poderemos, sempre, retornar a ela. Se, em contrapartida, fecharmos nossos olhos e “contemplarmos” nosso corpo pelo lado de dentro, entraremos em outra dimensão: as condições espaciais não corresponderão mais às grandezas externas mensuráveis. Poderemos vivenciar-nos amplos ou estreitos, erguidos ou dobrados, redondos ou pontiagudos; igualmente, poderemos sentir um buraco em algum lugar do nosso espaço interior, ou então, um adensamento, um “nó”. Esse é o espaço íntimo de nossa existência, que vai tomando forma e vai se manifestando enquanto estamos nos tornando o que já somos em potencial.

Quando fazemos um movimento, outros deslocamentos espaciais são acrescentados: as direções podem ser experimentados como paradoxais, quando o que vai para a frente parece ir para trás, o que se volta para cima parece estar caindo, ou quando direções opostas se unem numa única direção. As relações temporais internas também são diferentes das externas, que podem ser verificadas e medidas. No caso das internas, trata-se de uma vivência antes qualitativa entre os pólos de calma e pressa – um ir-com-o-tempo ou um lutar-contra-ele – do que quantitativa, de unidades de tempo. Também os ruídos audíveis, de fora, nos parecerão modificados, integrando-se outras percepções na paisagem anímica interior, que poderão desdobrar-se em imagens que se manifestam tanto na experiência psíquica da imaginação quanto em improvisações de movimentos espontâneos. Nesse momento, uma realidade interior vem à luz.

A realização e a observação dos movimentos corporais possibilitam a conscientização dessa realidade interior. A partir de observações clínicas poderia ser dito que isto não se verifica somente em determinadas pessoas, como pode valer como premissa genérica. Assim, em cada um os estados emocionais se expressam numa sensação espacial interior, que se manifesta na postura corporal e no padrão do movimento. Nesse sentido, o movimento seria uma matriz de projeção, sobre a qual, até certo ponto, a experiência interior poderia efetuar-se como imagem. As imagens, ou os estados emocionais, que surgem a partir das seqüências de movimentos propostos, possibilitam um confronto com a constelação arquetípica ou com a constelação de complexos de uma pessoa. Este confronto poder trazer clareza sobre o estado interno de um indivíduo.

Quando nós, adultos, voltamos nossa atenção para o corpo, e procuramos restabelecer a ligação com ele, ocorre uma espécie de volta ao maternal arquetípico, para a relação entre mãe e filho na primeira fase da vida. A atmosfera afetiva daquela fase em que a pessoa viveu quase que exclusivamente como corpo, bem como as sucessivas modificações posteriores, poderão emergir e se manifestar em muitas imagens. Muitas vezes esse processo é descrito pelas pessoas como uma volta à proteção inicial, mas também sentem tristeza ao se dar conta que sua experiência de vida foi unilateral negligenciando certos aspectos da personalidade. A volta para o corpo e os estados afetivos nele ocultos poderão levar à renovação do encontro com fontes de energia mais ou menos bloqueadas, devendo estas ser procuradas unicamente no próprio corpo.

A saudade de totalidade, inteireza psíquica e dinâmica fluente está colocada na Psique humana, dando testemunho da existência de um centro – o Self – que “é, não apenas, o centro de nosso ser, mas também, o círculo que inclui a consciência e o inconsciente”. (JUNG, 2012, v.12, par.44). Assim, nunca poderemos vivenciar tudo que seremos de forma totalmente consciente; poderemos, apenas, vislumbrar e intuir, aprendendo.”Nesse sentido, concluo que cada contato com qualquer aspecto de nós mesmos, ainda desconhecido, porta um valor especial e próprio, e tem algo indispensável a nos dizer no sentido de uma ampliação de nossa autoconsciência. Esse momento de ampliação, tão revelador, significa sempre também um contato com nosso Self em seu aspecto total, como um todo abrangedor”. (PEREIRA, 2014, p.67).

CORPO E CONSCIÊNCIA

A formação de dança inclui o desenvolvimento de uma percepção muito exata e detalhada sobre a consciência corporal. Na atividade pedagógica através da dança, o ponto de partida consiste na experimentação consciente do corpo quanto aos vários recursos de movimentação da coluna e das articulações, bem como, na inclusão do corpo como um todo dentro de um processo criativo. Além disso, ainda devem ser levados em conta o aspecto energético do movimento e as relações com espaço e tempo. Vale lembrar aqui o que já mencionei antes: o objetivo não se restringe apenas ao fato de que as pessoas aprendam a movimentar-se mais livremente, ainda que isto lhes traga mais alegria de viver; mas sim, o objetivo maior é a busca de um intercâmbio totalizante e equilibrado consigo mesmo.

Aos poucos, o trabalho pessoal com a dança criativa tomou o rumo do processo meditativo. A meta dos exercícios elaborados foi a de atingir a progressiva totalidade harmoniosa da pessoa, com base na integração consciente de seus estados emocionais, e um rebaixamento temporário do nível de consciência mental, proporcionando, assim, uma vivência mais intensa da integração do indivíduo consigo mesmo e com seu ambiente.

No trabalho corporal, percebemos, desde logo, dois tipos de consciência interagindo: aquela que o corpo possui naturalmente e a que é elaborada por um processo intelectual subordinado ao eu. O corpo possui uma capacidade perceptiva própria, que se distingue da consciência egóica em muitos aspectos. Possui uma memória mais antiga e mais ampla, pois conserva o registro de fatos que não estão mais presentes na consciência. Essa memória vai além da história individual e possibilita clareza e certeza nos comportamentos corporais especificamente humanos, como pode ser observado, por exemplo, em situações de agressão, defesa, reprodução, etc.

Isto se deve ao fato de que nessa vivência incidem as dimensões instintiva e arquetípica da experiência humana.

“Os instintos, como formas típicas de comportamento e reação, e os arquétipos, como formas de apreensão, formam o inconsciente coletivo […] Em minha opinião, é impossível dizer o que vem em primeiro lugar: se a apreensão ou o impulso para agir. Parecem que os dois constituem uma só e mesma coisa, uma só e mesma atividade vital que temos que conceber como processos distintos, a fim de termos uma compreensão melhor” (JUNG. 2012, v.8/2, par.273 e 282).

Para exemplificar essa concepção, lembro os grandes desportistas como jogadores de futebol, tenistas, patinadores e ginastas de modo geral. Eles mostram pela sua movimentação que abrangem todo o espaço interno e externo à sua disposição. Se houvesse interferência da consciência mental, suas ações poderiam ser previstas pela lógica, o que não acontece. O que torna esses desportistas geniais é sua capacidade de se entregar totalmente às percepções corporais. Em geral, as pessoas mais ligadas ao corpo permitem que essa função flua.

Outro exemplo é a queda de uma criança que cai em concordância com o movimento de suas articulações, deixando-se conduzir pela coordenação do próprio corpo, o que muitas vezes evita ferimentos graves. Já num adulto, a própria consciência poderá trabalhar contra essa coordenação natural e, ao invés de se deixar cair no fluxo natural do movimento, acabar por ocasionar a fratura de um osso.

Também durante uma vivência cujo tema era a representação dos quatro elementos, terra, água, fogo e ar, ficou muito clara a diferença de qualidade entre as duas dimensões da consciência: mental e corporal. Os movimentos surgidos revelavam o antigo parentesco do corpo com a essência desses elementos, pois demonstrava saber expressar com muita vividez, e detalhamento, o que, por exemplo, faz parte do elemento terra. Os movimentos expressavam uma interação que dificilmente poderia ter sido feita através de pura associação mental. O que veio à tona não foi apenas a força de atração da gravidade, a queda, o empuxo, a sensação de proteção, mas também, o pólo do crescimento e da aspiração. O corpo, assim, pode assumir a função de um mestre, pois, como microcosmo, ele tem um parentesco intrínseco com o macrocosmo. Em sua constituição estão presentes os quatro elementos; a história do desenvolvimento da vida está sedimentada em sua estrutura. Ele próprio é um pequeno mundo. Sua capacidade de percepção e expressão é mais abrangedora do que a consciência individual. O corpo sabe o que é bom para ele, e certamente poderá atingir seu objetivo, se a consciência não trabalhar contra ele. Porém, cabe ressaltar que nenhuma das duas dimensões de percepção deverá ser encarada de forma absoluta: não devemos orientar-nos apenas pelo corpo, nem apenas pela consciência egóica. Ambos têm a sua contribuição a dar. A consciência egóica preenche muitas funções importantes no desenvolvimento da pessoa, e uma delas é a capacidade reflexiva. Ela pode obter clareza sobre seus conteúdos e regularidades, o que o corpo não pode fazer. Se dirigirmos, então, nossa consciência mental para o corpo, proporcionaremos uma ampliação de nossa consciência pessoal.

Nos tempos de hoje tornou-se habitual trabalhar com o corpo, porque, entre outras coisas, a preocupação do ser humano com o bem estar e o conforto aumentou. Além disso surgiu a tendência de querer dominar o próprio corpo, para, por assim dizer, “tornar-se senhor em sua própria casa”, o que pode servir de compensação para a grande impotência do homem diante dos fatos consternadores ocorridos cotidianamente. No entanto, não é apenas descarregando energias que se pode dissolver a pressão interior. Os sentimentos também precisam achar sua expressão, assim como o impulso inconsciente, que faz aflorar determinados conteúdos na consciência. Nesse contexto, o encontro com o corpo e seu movimento deve ser considerado, simbolicamente, como indício da inteireza interior inata da pessoa, desdobrando-se nas duas direções de sua existência – o passado e o futuro – e adensando-se na consciência do Eu, centrada no aqui e no agora. O encontro com o corpo no movimento poderá trazer, ao indivíduo, além da renovação das forças, a ampliação da consciência e um fluir livre da energia vital.

Elisabeth Bauch Zimmerman

Bibliografia

  1. JACOBI, Jolande.  Vom Bilderreich der Seele.  Olten/Freiburg im Breisgau, Walter Verlag,1981.
    ______________ A Psicologia de C. G. Jung: uma introdução às obras completas. Petrópolis: Vozes, 2013.
  2. JANS, Franz Xaver.  Aspekte des Raumerlebes und der Raumsymbolik. Zurique:  Instituto C.G. Jung, 1986. (texto ainda não publicado)
  3. JUNG, C.G. – Psicologia e Alquimia. Petrópolis: Vozes, 2012. v. 12.
    __________A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 2012. v. 8/2.
  4. KALFF, Dora – Sandplay, Sigo Press, Santa Monica, CA, 1980.
  5. MINDELL, Arnold – O corpo onírico; o papel do corpo no revelar do si-mesmo, Summus, São Paulo, 1989.
  6. SILVEIRA, Nise da.  Imagens do inconsciente.  Rio de Janeiro: Alhambra, 1981.
  7. NEUMANN, E. – A Criança, São Paulo, Cultrix, 1981.
  8. PEREIRA, P. Zur Psychologie des Tanzes – Tese de Diploma de Psicologia na Universidade de Zurique, 1983.
    __________A improvisação integral na dança. Campinas: Medita, 2014.
  9. SCHWARTZ-SALANT, Nathan – Narcisismo e transformação de caráter, Cultrix, São Paulo, 1988.
  10. ZIMMERMANN, Elisabeth B. – Integração de processos interiores no desenvolvimento da personalidade. Tese de mestrado em Saúde Mental. Unicamp, Campinas, 1992